As crises sociais, econômicas e climáticas que causam a morte prematura de mais de cinco milhões de crianças a cada ano em todo o mundo, e, a necessidade de governos, órgãos de controle e das sociedades priorizarem a atenção à primeira infância foram a tônica da apresentação do presidente do Tribunal de Contas do Estado de Goiás (TCE-GO) hoje (08/set), no 6º Seminário Iberoamericano de Direito e Controlo, que está sendo realizado na Faculdade de Direito de Lisboa. Ferrari, que também preside o Comitê Técnico de Avaliação do Pacto Nacional pela Primeira Infância, do Instituto Rui Barbosa, é um dos brasileiros convidados a falar no evento que reúne cientistas sociais, juristas e autoridades de vários países.
“São justamente os pequeninos o nosso grande desafio! Em dois anos, no mundo todo, morrem mais crianças, a maioria de causas evitáveis, do que a população de Portugal, o nosso anfitrião de hoje. Um dado real e assustador”, afirmou o Conselheiro no começo de sua fala. E acrescentou que “isso só já seria mais do que suficiente para eleição da primeira infância como a máxima prioridade das nossas sociedades. Mas existem outras razões, como aquelas que o professor e especialista de Harvard, Jack Shonkoff cristalizou como aceitas unanimemente em todos os fóruns mundiais onde o assunto é debatido. Os seis primeiros anos da existência humana são importantes porque o que ocorre na primeira infância faz diferença por toda a vida”.
O conselheiro Ferrari aduziu que ciência mostra “o que devemos oferecer às crianças e do que devemos protegê-las para garantir a promoção de seu desenvolvimento saudável. Relacionamentos estáveis, responsivos, estimulantes e ricos em experiências de aprendizagem nos primeiros anos de vida garantem benefícios permanentes para a aprendizagem, para o comportamento e para a saúde física e mental. Por outro lado, pesquisas voltadas aos aspectos biológicos da primeira infância mostram como o estresse crônico causado por adversidades significativas, como pobreza extrema, abuso ou negligência, podem debilitar o desenvolvimento da arquitetura cerebral e colocar o sistema corporal de resposta ao estresse em permanente estado de alerta, aumentando o risco de doenças crônicas”.
Décadas de pesquisas em neurociência e comportamento fornecem a constatação “de que o desenvolvimento saudável da criança, do nascimento aos cinco anos de idade, cria os alicerces de uma sociedade próspera e sustentável. Cérebros, diz Shonkoff, são construídos ao longo do tempo, de baixo para cima. A arquitetura básica do cérebro é forjada através de um processo contínuo, que se inicia antes do nascimento e continua até a maturidade. As primeiras experiências afetam a qualidade dessa arquitetura, estabelecendo o alicerce, robusto ou frágil, para a aprendizagem, a saúde e comportamentos subsequentes.
Nos primeiros anos de vida, um milhão de novas conexões neurais, chamadas sinapses, são formadas a cada segundo. Após esse período de rápida proliferação, essas conexões são reduzidas através de um processo de seleção, de forma que os circuitos cerebrais mais tardios e mais complexos são construídos sobre os circuitos anteriores, mais simples,” prosseguiu o conferencista.
Barril de pólvora
Na sequência, o conselheiro Ferrari ressaltou que “em muito boa hora os tribunais de contas e entidades de controle iniciam um movimento internacional em favor da primeira infância. Não foi sem razão que o Fundo das Nações Unidas para a Infância, o Unicef, no final de junho deste ano, emitiu um alerta e um pedido de apoio para socorrer oito milhões de crianças que podem morrer de fome. Às vésperas da cúpula do grupo dos Sete Países mais Industrializados do Mundo, o G7, o Unicef estimou 1,2 bilhão de dólares o custo de levar alimentos e tratamento a crianças em risco de morte por definhamento nos 15 países mais afligidos pela crise global de escassez de alimentos.
A agência das Nações Unidas assegurou que a crise global deixa uma criança em desnutrição grave a cada minuto, nas nações com escassez de alimentos, a exemplo da região do Chifre da África e no Sahel. O quadro é tão grave que o Unicef o definiu como um potencial barril de pólvora. O aumento dos preços dos alimentos, provocado pela guerra da Ucrânia e os cortes orçamentários em decorrência da pandemia elevaram o custo do tratamento alimentar terapêutico vital em até 16 por cento. Dessa forma, o número de crianças com desnutrição aguda grave, que já estava aumentando antes mesmo do conflito Rússia versus Ucrânia, expandiu-se para direcionar o mundo a uma crise alimentar global em espiral”.
Ferrari citou um estudo de maio deste ano, publicado pelo Unicef, chamado “Desnutrição aguda grave: uma emergência de sobrevivência infantil negligenciada”. A diretora executiva da instituição, Catherine Russell, apontava que pelo menos 10 milhões de crianças gravemente desnutridas, ou duas em cada três – não tinham acesso ao tratamento mais eficaz para tais casos, os alimentos terapêuticos prontos para uso. Às condições adversas já citadas soma-se a seca persistente em alguns países devido às mudanças climáticas, como fator agravante.
A diretora Russel declarou, na ocasião: “Para milhões de crianças todos os anos, esses sachês de alimento terapêutico são a diferença entre a vida e a morte. Um aumento de preço de 16 por cento pode parecer administrável no contexto dos mercados globais de alimentos, mas no final dessa cadeia de suprimentos está uma criança desesperadamente desnutrida, para quem as apostas não são administráveis”.
Segundo o documento, quando uma criança é muito magra para a sua altura isso resulta no enfraquecimento do sistema imunológico. No caso de desnutrição aguda grave, temos a forma de manifestação da fome mais imediata, visível e com risco de vida. Em todo o mundo, pelo menos 13,6 milhões de crianças menores de cinco anos sofrem dessa forma, provocando uma a cada cinco mortes nessa faixa etária.
Outro dado preocupante é a escassez de recursos destinados à atenção de crianças e gestantes, lembrou o conferencista. “A ajuda global destinada à desnutrição aguda grave representa apenas 2,8% do total do setor de saúde da Assistência Oficial ao Desenvolvimento (AOD), e apenas minguados 0,2% do gasto total desta categoria usada pelo Comitê de Assistência ao Desenvolvimento da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para medir a ajuda externa”.
Aumento da desigualdade e da fome
Edson Ferrari lembrou que, “até há algum tempo restrita a determinadas regiões, a vulnerabilidade social de parcelas da população infantil espraiou-se também por nações desenvolvidas, afetando mesmo países como o meu, um grande produtor e exportador de alimentos, mas também detentor de elevado nível de desigualdade”. Mencionou Josué de Castro, autor de Geografia da Fome, médico e pesquisador brasileiro reconhecido internacionalmente como um dos maiores especialistas nesse tema, ensinava que “a fome é a expressão biológica de males sociológicos”. E que, “constitui, pois, a luta contra a fome, concebida em termos objetivos, o único caminho para a sobrevivência de nossa civilização, ameaçada em sua substância vital por seus próprios excessos, pelos abusos do poder econômico, por sua orgulhosa cegueira – numa palavra, por seu egocentrismo político, sua superada visão ptolomaica do mundo”.
O Presidente do TCE-GO apontou que o norte-americano Joseph Stiglitz, Nobel de Economia, autor de O Preço da Desigualdade e o Grande Abismo, vai na mesma direção ao pregar que a desigualdade é uma escolha, o resultado acumulado de políticas injustas e prioridades equivocadas. E que a professora Maria Beatriz Martins Linhares, psicóloga e pesquisadora do Centro Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil, defende que, “investir na primeira infância é como vacina para o desenvolvimento humano”. Nessa mesma linha de raciocínio a professora assegura: “É como se você vacinasse esse desenvolvimento para enfrentar riscos e adversidades. Como combatemos os riscos? Não é passando a borracha, mas modificando o impacto negativo do risco”. E arremata: “A primeira infância deveria ser a mãe de todas as políticas públicas, como um tema horizontal. Não podemos pensar em nada diferente de investimentos na primeira infância se queremos um desenvolvimento sustentável para a sociedade. Tem razões humanitárias, psicológicas, mas tem motivações econômicas também, além de implicações éticas, de garantia de direitos”.
Em sintonia com esse pensamento o conferencista citou estudos do Center on Developing Child, da Universidade de Harvard, instituição parceira do Centro Brasileiro de Pesquisa e de James Heckman, Nobel de Economia autor de trabalho inovador sobre o tema, mostrando que os investimentos na primeira infância, em especial no cuidado de crianças em situação de vulnerabilidade social, têm relativo baixo custo. E que, por outro lado, o retorno sobre o investimento varia de sete a 10 por cento ao ano, com base no aumento da escolaridade e do desempenho profissional, além da redução dos custos com reforço escolar, saúde e gastos do sistema de justiça penal.
Tribunais de contas em convergência
Na sequência, Ferrari pontuou que ante esse quadro os tribunais de contas e instituições de controle têm a obrigação de atuar de forma a induzir o rompimento desse círculo de desigualdade. ”Sem imiscuir diretamente na aplicação dos recursos públicos ou substituir o gestor, o que nos é legalmente vedado, as cortes de contas, jamais descuidando das suas atribuições e competências habituais, devem priorizar a avaliação das políticas públicas destinadas à primeira infância. Falo agora daquela indicação citada anteriormente, pela professora Beatriz Linhares, sobre a criação e monitoramento de políticas públicas efetivas para os seis primeiros anos de vida da criança, o que depende do convencimento de diferentes agentes sociais”.
Citou a seguir o conselheiro Sebastião Helvécio, integrante da Rede Internacional de Avaliação de Políticas Públicas e consultor do Tribunal de Contas da União, grande expoente nesse assunto. “Ele defende a ideia de que essa deve ser a primeira diretriz para os órgãos de controle externo, seguindo a convergência internacional liderada pelo Tribunal de Contas da França. Assim, defende que a maior contribuição que tais instituições podem dar ao fortalecimento da democracia é a avaliação das políticas públicas executadas pelos governos. No mundo público, o que se quer, o que se exige é uma boa governança, que passa pelo direcionamento e pela avaliação, para medir o desenvolvimento, a diminuição da desigualdade e a priorização das ações em favor daqueles mais fragilizados dentro de uma sociedade.”
Também é de Sebastião Helvécio a afirmação de que os tribunais de contas são a instituição mais gabaritada a fazer tais avaliações. Para isso o brasileiro invoca “as palavras do presidente da corte de contas francesa, exatamente pela isenção, independência e pela visão de médio e longo prazos. Trata-se de uma agenda recente, a partir de 2006 em seu nascedouro, a França. No meu País ela passou a ser discutida em 2011”. Mediante tais avaliações e uma atuação mais concomitante, continuou o conselheiro Ferrari, “os órgãos de controle externo podem induzir a um planejamento das ações em favor da primeira infância com mais efetividade; contribuir para a redução da desigualdade e da fome; além de coibir desperdícios e a corrupção, que também sugam e minam os já escassos recursos orçamentários”.
Ao defender a ideia de que é preciso agir o quanto antes para frear as consequências negativas da crise mundial, agravada pela pandemia de Covid 19, garantindo intervenções de apoio para os pais de crianças com até seis anos, Ferrari elegeu as políticas públicas como importante instrumento para o fortalecimento dos direitos da criança, a partir do apoio às famílias, para que elas funcionem como agente de proteção, de satisfação das necessidades básicas e do afeto para as crianças. “Estudo feito pela Unesco sobre os efeitos da pandemia na educação primária da América Latina e no Caribe indica o preocupante aumento da vulnerabilidade das crianças na primeira infância, faixa etária mais afetada pelo aprofundamento das desigualdades, com a drástica redução de acesso a serviços de cuidados e educação infantil, nutrição, vacinação e seguridade social”. Ao encerrar seu pronunciamento o conselheiro Ferrari falou aos congressistas sobre as bases legais brasileiras relativas aos direitos das crianças, a partir do artigo 227 da Constituição Federal, o Marco Legal da Primeira Infância, e o Estatuto da Criança e do Adolescente, dentre outros.
Abordou ainda a instituição do Pacto Nacional pela Primeira Infância, coordenado pelo Conselho Nacional de Justiça, com mais de 270 entidades signatárias, os avanços conseguidos pela Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) e pelo Instituto Rui Barbosa (IRB), órgão de conhecimento dos tribunais de contas, com um comitê técnico criado especificamente para tratar desse tema, sensibilizar os órgãos a se engajarem ao Pacto e, em suas esferas de atuação, desenvolver ações para atrair outros atores à causa da primeira infância. Por último, falou sobre a criação, pelo TCE de Goiás, do Portal da Primeira Infância, ferramenta tecnológica que, de forma inédita no Brasil, reuniu e consolidou em sua base de dados, os 12 principais indicadores da primeira infância, disponibilizando-os para consulta pública.
Texto: Antônio Gomes
Ilustração: Anderson Castro
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